Fornada

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Foi demonizada pois participou da morte de um ente querido. Não o conheci. Morreu adolescente, em uma  época  que essa palavra não era usada. Morreu molequote, meu pai falou. Eu quis saber como era  o seu rosto, se parecia com a gente, mas dele não sobrou nada, nem foto, nem o instrumento que tocava, um  clarinete. Meu pai veio para São Paulo, outros irmãos foram para Brasília e a família foi se dissolvendo pelo mundo. Sua presença era uma história trágica, contada de vez em quando, para que eu soubesse o quanto era perigoso andar de bicicleta. O meu  tio debaixo de um caminhão, desfigurado; minha avó meio louca, gritando que não era ele.  Ao vê-lo morto emudeceu para sempre.  Dizem que perdeu a voz por vários meses, mas isso não foi meu pai que contou.

Patrício, foi o seu nome, como os romanos. Tinha saído para comprar alguma coisa na venda, um amigo ofereceu a bicicleta emprestada, insistiu. Ele aceitou, agradeceu.  Se mandou ligeiro, se exibindo como se tivesse inventado antes da hora o bicicross.

Elas eram comuns na cidade, não eram  artigo de luxo.  Algumas famílias tinham até mais de uma, iam passando dos maiores para os menores, até se acabarem em sucata. Na família deles  não.  Eram pobres desse tipo de coisa, das coisas feitas em fábricas, como  carros, bombas de puxar água de poço, gerador de energia elétrica. Tinham muita terra, com riacho e peixes, mato com caça e passarinhos e quase nenhum dinheiro para comprar as coisas de serventia.

Na minha infância a lembrança de sua morte aparecia toda vez que eu pedia o presente de Natal.  Bicicleta. Desconversavam, perguntavam  se eu não queria uma Suzi, um Topo Gigio. Falavam que era caro, que eu não ia cuidar dela direito ou que o ladrão que roubava roupa no varal ia passar e era ela a primeira coisa que ele ia levar. Eu, teimosa que nem uma mula, todo ano pedia a mesma coisa. Aos sete, oito, nove e nada.

Aos dez meu outro tio, irmão da minha mãe, se indignou. Falou na mesa de domingo, num rompante, com uma voz desaforada, que Ele ia dar essa bicicleta pra mim. Que eu não esperasse meu pai, que tio que também era padrinho de batismo podia dar esse presente e ainda por cima seria eu mesma  que escolheria o modelo e a cor.

Ao acabar sua frase mal pensada uma escura cortina de silêncio caiu sobre a mesa. Todos voltaram-se para si, passando a olhar por um tempo demasiado  para o próprio prato. Eu fiquei invisível, mesmo sabendo que para mim era assunto dos mais importantes.  Não queria cutucar nenhuma onça com vara curta e depois ver minha tão sonhada bicicleta batendo asas mais uma vez.  O tio Antônio, com ar de quem tinha dito um ponto final, comia satisfeito, sem se importar com as possíveis consequências  que suas palavras causariam nos ouvidos do meu pai. Em casa, de noite, a caminho da cama, meu pai me disse: o assunto da bicicleta sou eu e sua mãe quem decide.

Já adulta, descobri sem querer a motivação que meu tio teve ao me presentear com a bicicleta da discórdia. Novamente, em um almoço dominical, evento prosaico que esconde dos inocentes sua vocação para palco de terremotos e trovoadas, meu tio, calibrado pelo terceiro copo de cerveja, começava a ficar enfático. Era o começo da real metamorfose que o dominava em quase todo almoço de família. Após a refeição, mas antes da sobremesa, ele se transformava em outra pessoa, totalmente oposta à sua personalidade reservada dos outros momentos da sua vida.  A voz ficava firme e mais alta, muitas vezes fazendo com que ele se levantasse da cadeira para projetá-la mais apropriadamente. Eis que vinha de suas entranhas um troante touro enraivecido, arauto da verdade absoluta, que ele passava a declarar a partir daquele momento. Podem achar que a descrição está  carregada nas tintas. O que posso garantir é que não sou amante de hipérboles. Meu tio era, para dizer o mínimo, excêntrico. Meu pai, fora da sua vista, o chamava de doido.

Com um soco na mesa, disse que  mandaria  para o inferno  todos os padrecos, que só fazem  rezar de barriga cheia e contar mentiras para o povo de barriga vazia. Ah se eu pegasse aquele padre Raimundo que me disse em 1937 que o mundo ia acabar de verdade. Que não era boato, não. E que eu me arrependesse e confessasse, ainda naquela semana, pois o dia derradeiro estava perto. Meu tio ficou aterrorizado e correu para casa pensando o que seria mais urgente fazer antes do fim do mundo. Ele decidiu que não poderia viver, ou morrer, sem antes aprender a andar de bicicleta. Naquele mesmo dia tentou e persistiu até achar o equilíbrio certo para se manter em movimento nas duas rodas.  A partir desse dia “ganhou o mundo” como eles falam na sua terra quando se referem às pessoas que se aventuram.

Minha primeira bicicleta foi o tio Antônio que deu. Quem intercedeu foi minha mãe. Escolhi a cor e o modelo, como em um sonho de cinderela. Era vermelha como o sangue, vital como a necessidade de horizontes e perigosa como a vida.

O olhar mostrava uma tranquilidade que nunca existiu. Quem o conhecia afirmava que, até ele saber da necessidade urgente da intervenção, vivia ansioso, remoendo erros do passado e avistando complicações futuras. Quando a data foi decidida, entre médicos e familiares, suas preocupações desapareceram da face, abandonaram seus músculos, tornando sua postura mais leve e descontraída, batendo em retirada, qual uma diáspora, para um lugar mais íntimo do seu ser.

Se você o conhecesse hoje, neste momento, indo para o centro cirúrgico, no décimo andar daquele hospital conhecido por sua excelência, poderia supor que estava subindo para retirar um verruga. Ora, quem sobe aos últimos andares de um hospital de renome, acompanhado de muitas pessoas, para retirar uma unha encravada? Enganava bem o danado.

Porém, dentro do olhar sereno estavam os olhos; duas bolas intensas, de pretume vivaz, que não se misturavam com o resto da cena. Eu as vi  saltarem,  logo acima dos lençois, enquanto o levavam na maca para o elevador, embaçando frascos de soro  pendurados no poste com rodinhas. Nublando o corredor cheio de pessoas, que num vai-e-vem, entravam e saiam dos quartos com suas bandejinhas de remédios.

Os olhos iam a caminho para a tal cirurgia delicada. Pareciam estrangeiros dentro do olhar plácido. Somente brilhavam demais, fazendo com que nada mais fosse notado em torno. As falas se abafavam em murmúrios, a movimentação se convertia em flashes de vultos desgovernados. O único ponto nítido eram as pupilas boiando em um borrão desfocado. Concordei vagamente com o que me perguntaram – algo sobre horários e onde eu deveria ficar quando o procedimento terminasse.

Mais tarde notei que cumpri horário e local, sem saber direito como. Enquanto esperava o final da cirurgia, li o romance que trouxe para passar o tempo, respondi mensagens que perguntavam como as coisas tinham corrido, cochilei.

Vou esquecer, pensei. Quando a roda voltar a girar e os detalhes desimportantes da vida me enganarem com seus prazos, senhas e salamaleques, vou esquecer do significado dos seus olhos.  Então, tive um arrepio na coluna.  Logo vai passar o efeito da anestesia. Será que você voltará com o olho que eu vi?

Dormiu agora há pouco. Estava cansada de tanto espirrar.

Caiu, exausta, com os olhos vermelhos, a cara inchada.

Seu nariz, ainda lindo, parou de tentar expulsar o que quer que estivesse invadindo seu corpo.

O anti alérgico fez efeito e veio o sono.

Por enquanto, só com remédio.

As coisas desse mundo, de todos os dias, como os tomates mais vermelhos, o pelo sedoso do gato persa, as poeiras cintilantes que brilham ao encontrar os raios do sol, o pólen dourado que viaja no vento semeando o mundo, todas essas belezas, lhe dão alergia.

Desde que nasceu quase tudo a incomoda, se intromete, perturba.

Deve ter vindo de um lugar mais brando, meu pequeno anjo. Mal chegou e já lidando com tantas batalhas. 

No sono pesado digo ao seu ouvido “aceite, aceite”.

Tudo aqui começa com aceitação.

Acordei  com um trecho de luz em meu rosto.

Uma faixa de raios coados pelas frestas da janela batiam  na brancura das folhas de um livro  que havia ficado  no criado mudo na noite anterior. Os mesmos pedaços de luz alcançavam meus olhos recém abertos, egressos de um sonho que, mesmo acordada,  se metia na realidade, intruso, continuando em curso, na vigília.

O entendimento vacilante não firmava certeza de nada.

A imagem de brancura extrema que pairava no quarto achava que  tinha o direito de querer ser alguma coisa além de uma luz que batia em papel branco. Talvez plasmasse uma assombração, uma advertência, um tufo de algodão, ainda sem sangue.

Eu não sabia mais quais imagens eram do sonho quais eram do quarto; não conseguia fixa-lo na lembrança para que ele se tornasse reflexão, nem voltar a dormir para vivê-lo, o que deixava livre o senso das percepções para misturar as verdades do sono com as dúvidas próprias do estar acordada.

Na luz cintilavam as poeiras iluminadas em sua lentidão e malemolência. Quase voltei a dormir. O sonho, esvaindo-se, invadido de realidade, dizia à mente que a luz era uma estrada leitosa que levava ao passado, mas também ao futuro. Uma via Láctea que se espraiava para o início e para o fim, me  forçando a seguir  caminhando para frente e para trás , simultaneamente. Nesse paradoxo eu me abandonava e conseguia continuar, desmanchando-me em luz.

Acordei de vez, assustada, com os olhos arregalados, querendo mais que tudo ver, como se a compreensão não dependesse da reflexão mas do ato de enxergar. 

Voltei meu olhar para o livro aberto próximo à cabeceira. Vi, sem a aura  misteriosa do sonho, o aglomerado de folhas, formando um volume distinto. Não deixavam de ser estrada, notei, só que agora com formas cada vez mais sólidas e índole muito mais metafórica.  O livro doía nos olhos de tão iluminado, sua forma, escancaradamente verdadeira. As roupas penduradas na arara, a  gravura mofada acima da mesinha onde aparece um velho carregando um enorme peixe nas costas que servia de rótulo ao óleo de fígado de bacalhau eram minhas  conhecidas. O cenário estava bom. Convencia e dava para acreditar que o dia havia começado e que eu já estava plenamente acordada.

Fui fazer um café e anotar o sonho no caderno verde.  Teria terapia na terça. Contaria tudo, um pouco resumido, arrumado, aparado. Sem as passagens secretas, sem estradas e fingindo destemor.

A repórter, na TV que ficava pendurada no fundo do salão, falava sem que eu pudesse ouvi-la, muito menos distinguir o assunto da matéria.

As tevês de padaria, de boteco, de cabeleireiro – tem TV em todo lugar público da cidade – não permitem que sejam escutadas. Estão lá para marcar território, não para serem compreendidas. O volume é baixo, apenas o suficiente para rivalizar com o rumor  do entorno.

As notícias, sempre importantíssimas por um período máximo de um par de horas, se misturam às miudezas das movimentações dos corpos e objetos: música ambiente, meninas cujo uniforme é um avental, passando com pratos e xícaras fumegantes, crianças pequenas  caindo de sono no colo de suas mães, também muito sonolentas e apressadas para levá-las para a escola,  um grupo  fazendo reunião com pão e manteiga, comentários do jogo da noite anterior, uma morte, na madrugada, que o chapeiro conta para o moço que tira o café.

Eu sentada muito cedo na padaria boiava a atenção neste mar de signos sem conseguir acompanhar nenhum  Permanecia mastigando, simplesmente só mastigando, ritmando aleatóriamente o andamento das mastigadas,  ora com a música  ambiente do salão,  ora com o barulho do toque do celular da moça ao lado.

Estratégicas para não começar a me recriminar. A palavra – recriminar –  ouvida nesse momento,  pinçada no meio do burburinho,  tinha sido  o spot. O punctum, que havia dado início ao processo.

Recriminar tinha como significado aproximado: acordar e descobrir que aquilo que eu havia identificado no dia anterior como crítico, reprovável e urgente, ainda estava lá no dia seguinte.  E, daqui mais uns dias a coisa iria ficar mais séria,  transformando  o deslise em defeito, em cansaço, visto que ainda estava lá e ainda não tinha sido corrigido, eliminado, elevando a desvirtude ao status de crime. Crime que vai se repetir, infinitamente dentro do ambiente claustrofóbico da minha cabeça.  É assim o caminho que  faz um pensamento levemente perturbardor se transformar em um re-crime.  Os dias passando, sucessivamente, deixando sua marca  no esquema do eterno retorno de uma mente neurótica.

Sentada naquelas mesinhas, que cabem somente duas pessoas, sozinha, muito cedo para ter companhia, muito cedo para ir trabalhar, não havia o que me impedisse. Ruminava, um ou dois pensamentos, os de sempre.

Passava das onze da manhã. Lucas se sentia incomodado por estar descalço. Olhava os próprios pés, muito brancos, em oposição ao fundo cinzento e fuliginoso da calçada. Olhou para eles com compaixão. Tinham um aspecto desprotegido, como estrangeiros recém chegados ao terceiro mundo. Por que estava sem sapatos? De manhã, no meio da rua! Naquele horário já deveria estar no hospital; a sala de espera já devia estar abarrotada de gente. As variadas feições de tédio. Deveria correr, achar como sair dali, calçar os sapatos. Pensar nisso provocava-lhe uma urgência na barriga. “Barriga! Lucas, onde já se viu usar essa palavra.” Não sabia se era fome ou vontade de urinar. Andava perto do meio fio, quase no asfalto, já que a maior parte da calçada estava tomada por cobertores estendidos, lado a lado. Um dormitório a céu aberto, repleto de camas improvisadas e ninguém dormindo nelas. Os moradores de rua haviam abandonado suas cobertas à inclemência do sol chapado de verão. Uma luz de meio dia tornava brutal o tom rosa e azul das mantas jogadas no chão. Eram motivos infantis, barbies, bambis. Novinhas, recém sujas na noite anterior, pelos que não estavam mais ali.  Se sentia cansado de andar por ali, seus pés doiam e a cena dos cobertores abandonados se estendia a perder de vista pelo horizonte. O Hospital logicamente deveria estar por perto. Quem sabe chegando lá encontraria seus sapatos na portaria. Uma das cobertas estava suja de cocô, meio mole, quer dizer, diarreico, mais claro que o normal. A diarreia do medo, ouviu uma voz, que não era a sua reverberar na sua cabeça. 

Acordou deste sonho com a frase pulsando na mente. Era muito cedo. Desde o início da pandemia cada dia acordava, desnecessariamente, um pouco mais cedo que o dia anterior. Resolveu levantar mesmo sendo quatro e meia da madrugada.  Foi até a cozinha, acendendo todas as luzes pelo caminho, e fez um café. Um trecho da rua cintilava, na moldura da janela. “Deve ter chovido.” Uma garoazinha fina ainda fazia brilhar contornos dos prédios. Assim, molhada, a rua até se apresentava bela. Na penumbra, naquele horário. Gostou de estar acordado. Ainda mais de ter saído daquele sonho. O preço era começar antes da hora a girar a roda dentada que movia o dia.

Algo de especial ia acontecer no dia que estava para começar. A direção do Hospital havia determinado o fim do esquema de home office absoluto para começar a introduzir aos poucos a volta dos médicos aos postos de trabalho.

Trabalhar em isolamento, em casa, não se revelara um grande problema para ele. Já era descolado nisso, de outros carnavais. Nada muito diferente de seus dias de adolescente, em casa, diante do computador por horas a fio. A motivação pode não ser a mesma,  mas a sensação de estar encasulado e protegido em seu pequeno mundinho lhe era muito cara. Ademais, gostava das rotinas auto-impostas. Trabalhar em casa significava lutar contra si mesmo. Todos os dias, antes de assumir seu papel de médico diante da tela do computador,  argumentava para si que seria uma alternativa deixar tudo de lado e jogar vídeo game a tarde toda. Em resposta, seguia-se a reação seca, cirúrgica, de um arrancar-se do mundo dos desejos e compulsões para  o do controle do horário, da linguagem e da persona. Nos quinze anos de exercício da medicina sua habilidade de Tarzan do ciberspace em pular de assunto em assunto já estava domada. O balé de um cipó a outro no mundo das informações continuava a acontecer, mas circunscrito a um só universo, o da saúde e suas doenças.

Na pandemia os dias de exílio transcorriam calmos, estava se dando bem em ser seu próprio feitor. De manhã  limpava a casa por duas horas; após essa tarefa, tomava um banho, vestia uma camisa branca na parte de cima do corpo,  uma bermuda na de baixo e estava pronto para  ser o Dr. Lucas Nuvola.

Falava com os pacientes pela câmera. Alguns já haviam se acostumado, treinando com os filhos e com os netos desde que os contatos foram proibidos. A maioria de seus pacientes era de idosos. A pandemia fez com que eles tivessem que aprender compulsoriamente a utilizar a tecnologia de comunicação. Porém, isso não significava que a comunicação fosse eficaz ou pelo menos satisfatória. As consultas demoravam mais tempo e as reservas em declarar informações relevantes aumentaram muito. Porém era prático, factível. Ele mesmo, antes de tudo isso, quando todos os encontros ainda eram ao vivo, considerava sugerir à direção do hospital que as consultas de rotina pudessem ser feitas pela internet. Obviamente que conseguiria ser médico sem ter que ver pessoas, pensava. Pelo menos era o que achava.

Tomou mais um café e comeu um croissant requentado. Cinco e meia da manhã, ele temia que fosse passar o resto do dia com sono. O sol  começava a iluminar hesitante a pia da cozinha. Gastara um bom pedaço da madrugada lendo as últimas informações do boletim de Infectologia, alternando a leitura com momentos em que deixava correr os dedos através de um toque ágil da esquerda para a direita na tela do celular, descartando rostos e mais rostos de mulheres possíveis no aplicativo de encontros. Ele não queria realmente encontrar alguém mas não conseguia se furtar, nessas horas mortas, a descartar quase que automaticamente as infinitas fotos de meninas.

A rua perdera o brilho molhado da noite dando lugar à fachada mais que sólida das colunas do prédio em frente ao seu, na Rua Maria Antônia. O silêncio, que num dia como hoje, antes da pandemia, já estaria coalhado de ruídos, ainda pesava no ar, reverberando muitas ausências. Os passos que não estavam na rua, os escapamentos que não haviam saído das garagens marcavam com intensidade suas ausências. Marta também não estava.  Com um argumento, mais uma vez, escorregou por entre seus dedos e não veio ficar, na noite passada. Ele não sabia com que nome deveria se referir a ela. Se era uma ficante, uma transa, uma amiga ou uma colega. Uma dúvida de nomenclatura que causaria algum embaraço, não fosse a ausência de encontros sociais amenizar a questão. A questão, obviamente, era que ele queria que ela ficasse, muitas e muitas vezes em que ela nem estava por ali.

Acabou a leitura do boletim, fechou o aplicativo e colocou comida para o peixe, que se  chamava Ubaldo – o ubíquo.  

O dia se aproximava e com ele o momento da retomada. Lucas teria que pegar o carro e sair na rua. Ao chegar ao hospital teria que atender um número mínimo de pessoas. A novidade: deveria fazer os retornos através de uma ligação telefônica. Eis aí – além do retorno das pessoas – um outro problema. Telefonemas. A interdição das ligações era um fenômeno recente, que não tinha nada a ver com a pandemia. De uma hora para outra o ato de telefonar tinha passado para o lado das impropriedades, coisa que uma pessoa bem educada não deveria cometer. Aquele que se importava com a elegância sempre enviava uma mensagem prévia perguntando “posso ligar?” e muitas vezes tudo era resolvido por escrito mesmo. A comunicação em tempo real estava em baixa, quase um tabu.

Ele tinha vontade de ligar para Marta. Talvez, justamente, por ser uma indelicadeza. Sentia que seria uma espécie de marcação de território. Até o momento isso ainda não tinha sido feito. Se conheceram na casa de um amigo, trocaram mensagens, nunca se falaram por telefone. A simultaneidade, o ritmo do diálogo, as pausas para a troca de interlocutores, faziam-no fantasiar com uma rejeição irremediável. Quando ficava com muita vontade refletia  que escrever dá muito mais trabalho e tentava se imaginar  com o telefone na mão, falando. Ouviu sua própria voz mentalmente, engasgando ou gaguejando de maneira quase imperceptível. Era um costume seu imaginar-se passando vergonha, o que não acontecia na vida real. Nada de ligações ao raiar do dia, decidiu.

Lavou a louça e, desta vez, vestiu-se com toda a roupa para sair; calça, camisa, meias e sapato. Despediu-se da escova de dente de Marta, que se encontrava largada num canto da pia há várias semanas, penteou o cabelo todo para trás, checou se a caixa estava em seu bolso e saiu para o mundo.

A Rua da Consolação continuava deserta às sete da manhã, deixando para a imaginação do passante adivinhar se existiriam pessoas debaixo dos cobertores que dormiam na orla do muro do cemitério. O sol não ardia cegante como no sonho.

Lucas dirigia devagar, usufruindo a paisagem erma e rara na cidade em que nasceu. As vitrines e as portas de correr de metal que se sucediam martelavam a mensagem incômoda de não haver ninguém para olhar, ninguém para furtar.

As árvores estavam gordas e o ar translúcido. Talvez isso não fosse obra da estação do ano, mas unicamente da ausência de  poluentes no ar. Ao parar no semáforo cruzou olhares com o vulto de uma senhora na janela do segundo andar de um prédio decrépito da década de cinquenta. Ela, ao perceber estar sendo observada, abandonou rapidamente o objeto que tinha nas mãos e saiu da janela para o interior da casa, em uma posição segura onde não poderia ser vista. Ele não viu com clareza o que estava em suas mãos mas, inexplicavelmente, tinha certeza que era um telefone. Um daqueles antigos, pretos e pesados que estragavam as unhas das secretárias. A velha lembrava Bete Davis com o telefone na mão, os olhos arregalados.

Lembrou mais uma vez com uma desagradável ansiedade que seria hoje o dia, o dia dos telefonemas. Uma voz interna abrigava seu pedaço criança que se recusava a aceitar o retorno ao hospital. Uma ervilha dura e importante dentro do seu ser. Estava na casa dos trinta, e fazia o possível para esconder o menino de oito anos que ainda estava lá.

Para calar o menino, enquanto dirigia, ele narrava para si mesmo explicações e arrazoados sensatos sobre os acontecimentos dramáticos que vinha vivendo até agora. Sua voz interna aveludava-se, imitando um comentarista de tevê falando que  “O ano avança complicado, moroso. A situação mais atípica que a humanidade já viveu. A pandemia chega ao mês de agosto e muita coisa ainda poderá acontecer.” A voz de locutor apaziguava seus medos por alguns instantes e o menino recolhia-se para o interior.

Mais de mil mortes diárias, que eram esquecidas rapidamente, para dar lugar a mais mil no dia seguinte. Sabia que aos médicos era vetada a possibilidade de pensar em mortes da maneira emotiva que as outras profissões podem pensar. Mortes devem ter nomes e particularidades, mas somente por um curto espaço de tempo, não para sempre. Devem desaparecer para dar lugar a outras pessoas, vivas. Eventualmente doentes.

Agora estava perto de chegar, já na Avenida Paulista. Poucas pessoas caminhando nas calçadas  bastaram para desmanchar o clima apocalíptico que havia se instaurado em seu humor desde o sonho e o despertar precoce naquela madrugada. Levou a mão ao bolso da calça para checar. A caixa de fósforo estava segura, dentro dela  o rabo da lagartixa.

Descendo a rampa da garagem recordou com perplexidade o que havia feito de manhã: o momento em que despertou, mais cedo, e olhou para a rua toda molhada;  o momento do descarte das meninas com a polpa do indicador; sua ida ao banheiro para o banho e o momento em que achou o rabo da lagartixa.

Naquela manhã, enquanto escovava os dentes, uma coisinha pequena atrás do vaso chamou a atenção da sua vista. Um rabo de lagartixa, possivelmente o da lagartixa que costumava habitar seu banheiro, jazia caído atrás da privada, solitário, destacado do corpo.  A parte amputada, caída no chão, já estava um pouco seca, ele sentiu ao toque. O pedaço que faltava, o resto da lagartixa, não estava por ali.

Era uma que costumava aparecer no teto do banheiro, há mais de um ano. A convivência era respeitosa. Ela nunca ousara cair, gelada, em sua cabeça e ele nunca a ameaçara com venenos e cutucadas de vassoura. O que poderia tê-la assustado tanto a ponto de ter que deixar uma parte de si para trás? Pensou. Foi até a cozinha, esvaziou  uma caixa de fósforos e guardou com cuidado o rabo solitário lá dentro. Saiu do banheiro com ela no bolso, já atrasado para o trabalho.

Achava que os pacientes não o consideravam um bom médico. Observar era sua paixão secreta, mas os pacientes não sabiam disso. Em seu tipo de observação, digamos livre, costumava ter poucas certezas e era disso que gostava. Acontecia de, ao considerar um paciente, duas caixas isoladas se abrirem em sua mente: uma que coletava a queixa, o índice de colesterol, a evolução da cirurgia, o estado geral. Noutra caixa,  guardava o atípico: um dente faltando , uma sombra no semblante, um olhar desconfiado, um cheiro de mofo em  roupas que pareciam novas. Apesar das informações da segunda caixa não estarem registradas por escrito em nenhum arquivo ele era capaz de lembrar com exatidão destes sinais, aparentemente inúteis.  

De alguns pacientes registrava o tom de voz, se costumava demonstrar ansiedade, conformismo ou desamparo. Lembrava se vinham com o marido ou a filha,  e, se era um cuidador quem vinha junto, observava a  distância que sentavam ou do outro. Ao Sr. Alfredo Rinaldi sempre dizia o quanto ele poderia se beneficiar ingerindo menos açúcar, unicamente para olhar sua reação: um tamborilar bem audível no tampo da mesa, com os dedos da mão direita, sendo que um dos dedos apresentava  uma mancha preta na unha; um hematoma velho e enegrecido de uma provável martelada no dedo.  No último encontro, antes de tudo fechar, teve que comunicar ao Sr. Alfredo a recidiva do tumor. Observou que a informação causou uma leve e quase imperceptível alteração no padrão do tamborilar. Guardou esse dado para si.

Quanto aos dados objetivos, estes era preciso consultar o prontuário para se inteirar de quem estava à sua frente. Não era um prodígio de memória, felizmente ninguém estava em sua cabeça a ver essas atividades.

Na garagem parou em uma vaga distante dos poucos carros esparsos. O andar estava quase vazio. Em um dia comum estaria chegando, vindo da academia. Como estavam fechadas não precisou se sentir um farsante em não ter se exercitado nos últimos meses. Lá fora ainda fazia frio, porém no subsolo das garagens não existe clima. Sentiu-se protegido e levou a mão automaticamente ao bolso, para checar se o rabo ainda estava lá, dentro da caixa. Estava, e isso lhe deu confiança, sem atinar na exata  razão de ter decidido trazê-la consigo para o trabalho.

Desligou o motor e notou um  vulto furtivo e encapotado tentando alcançar o elevador antes que  outra pessoa o fizesse. Com a doença, havia que se evitar ao máximo o contato humano. Uma atitude que, para muita gente, veio a calhar, legitimando a recusa da companhia do outro. Era possível parecer menos comunitário, sem recriminações.

Ficou um momento dentro do carro, contando as pilastras da garagem. Calculava se já seria possível sair do carro sem encontrar ninguém. Abriu a porta e olhou mais uma vez em torno de si. Nenhum barulho de motor, nem de saltos de sapato caminhando no cimento.

Hoje seriam só cinco consultas presenciais e cinco telefonemas e estaria liberado para voltar para casa e continuar o trabalho pelo computador, pensava consolando-se.  Subiu ao décimo andar sozinho. A porta automática se abriu e a recepcionista não estava em seu balcão. Lembrou que, talvez, o senhor da faxina também não estivesse. Os corredores, que outrora pareciam pequenos, agora alongavam-se imensos e solitários, até o ponto de fuga bege ao fundo. Uma porta e outra já estavam com a luz acesa, já haviam colegas no andar. Passou sem chamar atenção para si e chegou em sua sala. Sentou em sua mesa, ligou o computador e retirou a caixa de fósforo do bolso. Guardou-a na gaveta ao lado do celular. Este se acendeu ao ser movimentado revelando  uma ligação perdida de Marta. Afinal ela havia aparecido. Havia me ligado.

Ficariam as duas para mais tarde. Abriu a lista de consultas e retornos e começou a trabalhar.

Muitos dias ela não via a vida passar direito. Olhar mesmo, com atenção, só dormindo, quando  inventava os sonhos marcantes. Era assim porque tudo em volta tinha um ritmo. Exterior. Meio louco, meio rápido demais. Um costume de acelerar que se instaurou e que perdeu na memória o motivo. Nunca questionou se acaso pudesse existir outro andamento, como havia antigamente os discos de 78 rotações.

Mas, parece que há. Acontece que neste agora é diferente. A mudança é recente,  faz pouco tempo que ela e o resto do mundo está assim, por isso é capaz que esqueçam, quando  tudo voltar ao normal, se é que esse patamar existe, quando os motores forem ligados novamente.

Mas, como seria bom se fosse possível lembrar. Se conseguisse reter nos seus passos um pouco da morosidade atenta dos dias vazios do presente. Queria lembrar do confinamento e de como o andamento mudou.  E nunca mais esquecer que pode existe outra música pra dançar. Uma que, pausadamente, nos faz andar sem correr, ver e ao mesmo tempo observar, ser junto com estar. Algo que faz o espaço restrito se tornar ilimitado e traz a vida tão perto que até  pode-se  ela debaixo do braço, para a sala, a cozinha, o banheiro.

Estava em casa, que novidade, e feliz,  porque haviam desligado o motor do carrossel e esqueceram de tira-la do brinquedo.  Montada no corcel branco de crina dourada podia estudar, trabalhar, cozinhar e notar as partículas de pó boiando no cubo da sala, os sons de martelo do vizinho e seu próprio coração. Sem pressa e instantaneamente. Fenômenos em uníssono. Como em uma revolução popular, onde os ínfimos farelinhos de coisas que ocorrem, finalmente, tivessem a mesma importância que os antigos mastodontes donos do poder dos acontecimentos, e, por um passe de mágica, ganhassem voz no parlamento das importâncias.

Queria manter algo desse período tão triste, queria  lembrar que é possível viver somente para seguir vivendo. Deitar sem fazer retrospectiva do que não foi cumprido e só dormir mesmo, colada no momento, pregada de cansaço.

 

penas

 

Uma pena cinza de um pássaro comum dançava caindo lentamente do céu contra o azul fraco da manhã. Estava bem visível, pelo contraste com o fundo. Em sua queda ou vôo –  como saber – ora descia, ora subia, como se estivesse indecisa, como a manhã, que hesitava começar.

Olhei para seus movimentos até cansar a vista. Meus olhos rumaram para longe dela, para descansar soltos através do espaço vazio entre as casas, árvores, céu e chão de carros. Um hiato de liberdade, pensei. É quando o dia começando, com seus inúmeros barulhos agitados, traz embutido um silêncio que se instaura com a visão de tudo o que se agita. O apito do metrô e seu movimento retilíneo participam dessa criação, abrem caminho para esse silêncio, indo e vindo, longe, mudo, carregando gente que não vejo mas sei que está lá.

Penso, e procuro instintivamente pela pena. Lá está ela. Chegou no ponto onde é vista por mim com um fundo verde escuro, das árvores que estão do outro lado da avenida e, mais um instante, agora contra o fundo verde da árvore do meu quintal. Está se aproximando, o contraste que a torna visível diminuindo enquanto ela chega. Deliberadamente vindo em minha direção.

Tento distingui-la, mas com dificuldade. Mantenho meus olhos apertados em seu vôo para não perdê-la de vista. Somente olhos que já a acompanharam podem notar sua presença junto ao fundo cinza do piso onde me encontro. Sua queda está próxima. Ela se aproxima de mim como se pudesse controlar sua trajetória, como se não estivesse à deriva nas mãos do vento.  Cai perto do meu pé, no chão, no fundo cinza que é miméticamente igual à sua cor.

Invisível para alguém que chegar agora e olhar para mim, para o chão, para o conjunto da varanda. Eu mesma quase não seria capaz de recuperá-la se ousasse desviar o olhar. Fecho meus olhos para sentir melhor o calor do sol que começa a subir. Sei, mesmo sem vê-la, que ela está lá, parada, oculta,  unicamente porque segui sua trajetória.

 

Quando não se pode fazer nada qualquer coisinha insignificante que nos ponha em atividade se torna importante.

Por recomendação médica tinha que ficar ociosa e naquela manhã ensolarada de possibilidades era necessário ficar parada por causa do corte. Uma cirurgia pélvica a havia colocado em suspenso, ameaçando abrir-lhe as entranhas pelos pontos cirúrgicos e nos últimos cinco dias a não ação a estava deixando meio louca. Às vezes deitada, às vezes em movimento lento, mas longe dos afazeres que pudessem levá-la a fazer contrações abdominais, ela calculava se seria hora de andar até a cozinha para buscar um pedaço de chocolate que sobrou do ovo de páscoa.

De repouso. Sentiu-se invejada e lembrou que é grande o número de pessoas que tasca o lugar comum diante do impedimento: quem dera eu pudesse ficar sem fazer nada, só dormindo, lendo e comendo chocolate. Comer chocolate para ela sempre foi controvérsia e poesia.

Deixou pra lá e resolveu comer o pedaço de abacate que já estava ali, na beirada do criado mudo.

Pensava que talvez fosse mal agradecida. Estava ali, no lugar privilegiado que a maioria dizia desejar estar e, no entanto, queria fazer qualquer coisa, nem que fosse passar roupa.

O que a irritava não era exatamente não poder fazer nada.  Era perceber que quando queria fazer algo, isso significava outra coisa, mais próxima do exibicionismo. Fazer uma frase original, uma bracciola perfeita, um comentário inteligente sobre um filme, impressionar o outro. Estar na ativa, caia-lhe o pano, significava plateia e naquele repouso ela se encontrava sozinha. Um cachorro sem dono.

Não estava aguentando a ideia que voltava, acompanhando o próximo pensamento, de que o que queremos mesmo, no fundo, é mostrar. Como os cachorros – animais muito chatos, por esta ótica.

Queremos agradar descaradamente, como eles, que fazem coisas por aprovação, iludindo-nos que estão fazendo por biscoitos. Observava-os sempre que podia nos passeios diários pelas redondezas, os vizinhos com seus cachorros; tecendo mentalmente longos raciocínios sociológicos, já até conhecia de vista todos os casais, sem nunca ter abordado nenhum deles para uma conversa amigável e despretensiosa.

Por isso a fome canina acabou faz tempo, dizia para si, um dia colocaria isso no papel.  Cachorros que vivem com humanos talvez nunca, no espaço de suas vidas, tiveram a chance de experimentar em seus estômagos a urgência e a radicalidade da fome constante. Gerações de pets já apresentam esse traço em sua epigenética. Está extinta a fome entre os cães. À sua disposição têm comida seca, molhada, snacks em forma de osso, que mimetizam a aparência de doces, ração diet, light, para problemas renais, para cachorros senis, o que explica suas existências exangues de instinto e um certo ar de tédio existencial.

Eles não querem mais um biscoitinho – não estão com fome! – e são fofos daquele jeito porque estão viciados em agradar. Como nós, no facebook.

Ela ainda não havia levantado da cama, nem ligado o notebook e estava há algum tempo pensando aquelas coisas que a impediam de iniciar seu dia. A opção de olhar a rede social antes do banho trazia a lembrança da naúsea na boca do estômago de quando ainda fumava e pegava mais um cigarro mesmo sem ter nenhuma vontade de fumar. Dar likes, e pontuar lindo e amei para semi-desconhecidos na internet não era exatamente fazer algo. Essa atividade podia, mas enjoava o estômago como aquele mais um cigarro e a auto comparação com os cachorros, nem se fala, uma desonra. Foi para a mesa escrever, “prefiro gatos e hoje não estou para likes”.

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Depois de ter escrito tudo aquilo, o que lhe rendeu uma hora de atividade legítima, leu e releu o texto, notando que faltava o elemento gerador de tensão, que de praxe tem que entrar na dinâmica narrativa, senão a coisa não evolui. E daí que um personagem está deitado, ruminando suas mesquinharias e ódios cotidianos? Para sairmos do impasse há que fazer o personagem sofrer algum revés, alguma ruptura de contexto, como ser demitido da universidade em que trabalhava sob acusação de assédio a uma de suas alunas menor de idade, ou ter sessenta anos, estar andando de bicicleta e perder a perna em um atropelamento. Parecia artifício de novela mexicana, mas ela considerava aquelas soluções como altíssima literatura. Espremendo, quem sabe surgiria o caminho através de um tombo na escada, uma invasão do quarto por uma barata voadora, uma campainha que toca, algo que desse um salto na narrativa. Notara que o lugar comum mais comum do cinema, com relação a escritores, era o impasse criativo. Tão banais quanto suas considerações sobre cães foram suas subsequentes tentativas de introduzir um motor inventivo para que sua história andasse. Acabou pegando no sono novamente às onze e onze da manhã, para viver um sonho perturbador.

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Sonhava que falava para o marido que a vontade de escrever deve ter surgido quando foi ao zoológico pela primeira vez com a escola. Sempre gostou de animais e os animais que tinha visto no zoológico eram um deslumbramento, pois faziam parte dos de tipo selvagem. Eles eram maiores, de outros países e cheiravam muito, um misto de fedor e perfume. Ainda que em condição de presidiários, sonolentos e cercados de grades, em sua cabeça infantil eram o símbolo do exotismo, da bravura e do mundo desconhecido dos instintos.

O passeio ao zoológico havia sido diferente de tudo o que havia vivido até o momento, em sua infância de menina solitária, que passava tardes inteiras observando o jardim de casa – que na época ainda tinha grilos, besouros, joaninhas, lagartas de fogo, gatos passeando no fio do muro e lá no fundo do quintal um cachorro preso na corrente. Descortinou um mundo mágico, elegante, variado.

No final da visita a professora de português pediu, para a próxima aula,  uma redação que contasse as impressões do passeio. Ela fez seu primeiro texto de dez páginas. Maravilhada com a experiência em si nem pensou na possibilidade de ser bem avaliada; o que acabou acontecendo, para seu tormento futuro.

Ganhou a nota máxima e desde então tem carregado um fantasma, escrever para sair um texto bom. Péssimo.

Seu marido ouvia calado e com paciência, o que era o possível naquele horário, quase madrugada da manhã. Ela pausava a narrativa com um olhar de relance a ele, que mastigava como se fosse um moedor, a espera de comentários. Não demorava muito na pausa, retomando a fala, para que ele não percebesse sua expectativa.

Na ausência de comentários, perdeu a paciência e chegou logo ao ponto em que o relato causaria espanto. contando em aceleração que esse processo de ganhar dez na redação atirou-a ao patamar dos cachorros, que fazem tudo por recompensa. E parou de falar. Aí sim, tendo quase certeza de que agora ele falaria algo diante de tal repto.

Passaram-se alguns momentos, para ela constrangedores, e ele falou calmamente que gostava muito do que ela escrevia, que aliás ela deveria escrever mais e que uma pessoa que tem talento não deve furtar o mundo do benefício de conhecer seus frutos, olhando-a com ternura e voltando a triturar seu pão.

Fez-se na copa um silêncio demorado. Ela olhou para baixo, para o jardim do prédio com displicência. Viu as árvores que margeavam o playground flutuarem lentamente com o vento, olhou a grama começando a clarear com os primeiros raios de sol e logo em seguida, como se surgisse do nada viu um buraco fundo, retangular, em forma de cova no meio terreno.

Um som grave de máquinas funcionando acompanhou a visão e ela soube que algo aconteceria, como se o sonho fosse dirigido por David Lynch.  Pensou ansiosa em avisar o marido, antes que a fatalidade ocorresse. Não deu tempo e a câmera tomou-a em close, de boca aberta, o som das máquinas mais ensurdecedor e agudo que no início, enquanto o carro ganhava o plano em alta velocidade sobrepassando suas cabeças, vindo da direção de suas costas, quebrando a janela da sala de estar,  indo cair exatamente dentro da cova recém cavada no jardim.

O barulho parou. O marido arregalou atônito os olhos.

Apesar de assustada deixou que ele ficasse fora da cena enquanto se concentrava em entender porque estava sonhando com um acidente de automóvel. Ficou com vergonha, sua mãe havia morrido há pouco tempo e a cova se parecia demais com um túmulo para ser coincidência. Sentiu uma imensa dor que se traduzia em imagem na visão do carro afundando no buraco cheio de lama mole. Sentiu pena do motorista apesar dele ser um criminoso. Soube, de súbito, que ele fugia, da polícia ou de sua própria gangue, o que no final dá na mesma diante da morte.

Voltou à conversa com o marido apagando toda a parte do carro, retomando sua réplica na conversa sobre escrita.

Eu sei que você gosta do que escrevo, eu mesma também gosto, em certas ocasiões, mas o que eu gostaria mesmo, e ficou parada com a xícara na mão, era de escrever como quem vomita, escrever como uma ariranha que fugiu do zoológico, como um gato selvagem e não como um pet.

 

 

Falo enquanto a vida da minha mãe está por um fio, no hospital.  Uma vontade que veio só agora no final, quando ela foi ficando grave de uma doença antiga, que vem de longe, de muito longe.

Comecei sem pensar. Puxando goela afora um emaranhado tão grande de fios embolados que, no princípio, achei que não ia sair. Eu  engasgaria para sempre.

Só que não. Pensar me protege. É meu anjo da guarda.

Estou no segundo dia deste perigo. Acordei com o texto, pensando. Cortando, organizando, movendo frases, encadeando raciocínios; para explicar, clarear. Por enquanto, nenhuma novidade. Diante da possibilidade de um coração sangrando inventamos um texto.

Uma vez que isso ficou claro, vamos a ele:

Agora, que você está bem doente, tenho pensado na morte como um fato real. Antes era uma ficção. Uma construção mental.

Quando tudo começou; quando você ainda esquecia só números de telefone, eu já pensava na morte, mas em uma morte hipotética. Quando eu refletia nos porquês de você estar apagando o passado também pensava na morte, a metafórica. Pensei na morte por muito tempo durante sua doença. Nunca a real, a feita de carne e osso, de frio e solidão.

Agora parei de supor, de analisar. Morrer não é mais filosofia. Lavo louça e me pego pensando em pedaços de cenas concretas.  Como será o dia da morte? Chuvoso, barulhento? Quem vai me ajudar com a papelada? Vou ficar calada, vou chorar, finalmente? Minhas filhas vão sentar ao meu lado ou pelo menos estarão por perto? Vou me acostumar a não ter mãe?

Há dez anos temos tentado. Eu e você, ir se acostumando com esse limite.

E temos cumprido a via crucis de, cada dia mais um pouco, ir desbotando as lembranças comuns, desfazendo nossos laços, pendurados em mútuas rotinas compartilhadas, nos gestos parecidos, aprendidos ao nascer, no tom de voz que as pessoas confundiam ao telefone. Semelhanças construídas que nos tornaram uma para a outra mãe e filha.

Ontem a realidade chegou para substituir a subjetividade. A médica informou sobre a entubação, o rebaixamento de consciência, sua ausência de reação.

Mãe, que pressa é essa! Radicalizou?

Eu sei que estou sendo injusta. Seu ritmo de retirada ainda é lento, em fade out, só que agora um lento que se aproxima do fim. Tenho dores de estômago de sentir que muita coisa ficou pendente e o tempo está acabando. Por outro lado, me pergunto se isso tudo que ficou por fazer, que chamo de “nossa relação”, não é só uma história inventada por mim, uma ficção sem reciprocidade. Não sei. Mais uma coisa que não sei. Não deu tempo de perguntar. E esse processo durou dez anos.

Você decidiu se ausentar aos poucos, abandonando os nexos, desligando os sentimentos, encostando os traumas para um canto. O que, aliás, fez muito bem pra você. Seu semblante foi desanuviando, as rugas entre as sobrancelhas foram diminuindo, você parou de suspirar como se a vida não valesse a pena.

Que raiva! Você sempre foi muito educada. Nunca reclamou, não esmurrou, não saiu do labirinto, ficou presa a me servir cafezinhos formais, na bandeja de prata, com abnegação, na xícara inglesa, sobre o paninho de linho, de olhos fechados, de olhos muito bem fechados. Como eu gostaria que não tivesse sido assim.

Fui assistindo sua decisão de perder a memória com alguns protestos. Tentando sacar seu corpo da areia movediça, algumas vezes através de mais visitas, outra época fazendo acupuntura, levando desenhos para você colorir e que no fim quem pintava era eu, pegando na sua mão, no final, pegando mais e mais na sua mão e isso foi tudo o que eu pude fazer.

Foi bom, mas não adiantou. Nem retardou o que ali já estava em curso. Penso que não toquei no ponto, que deveria ter feito mais, arriscado mais, que não enfiei o dedo na ferida de vez, e me culpo por isso e já sei que não é adequado culpar-se por isso. Voltamos ao mesmo ponto. Um labirinto.

Em câmera lenta, de visita em visita, cada vez mais constrangedoras, fomos indo assim, juntas, esquecendo. E eu, fingindo não saber que o peso era imenso.

Marchando juntas e lentamente por um quintal de Escher, você esquecendo da vida e eu  esquecendo que um dia esse passeio de mãos dadas acabaria.

Para onde foi sua alma, mãe? E como ficará a minha?

O tempo acaba mesmo! Está acabando – apesar de ser infinito – e eu nunca mais vou poder falar essas coisas que estou dizendo aqui para você. Já não podia, são coisas de papel.

Nunca vou saber se você me responderia “que bobagem, não tem nada disso não! Você não pense essas bobageiras, viu!”.

O infinito do tempo vai ficar só do meu lado, minha ponta do barbante,  e nunca saberei se você decidiu levar a outra ponta consigo, lá para o outro lado.

Fica aqui comigo esse texto e o resto de você que está em mim, o que hoje chamo de mãe: a colagem de seu rosto em suas  várias idades,  sobreposto sobre si mesmo como um papier machê e muitas suposições e dúvidas, muitas saudades de nossas risadas da infância e você me consolando das dores de garganta, das alucinações do sarampo e da minha tristeza diante do tamanho da minha impotência. Só posso contar com essa mãe, a que está em mim.

A que em breve irei me despedir desejo sossego, aconchego e uma boa viagem de volta ao lar. Vai com Deus mãe, você merece a Sua companhia.