Crime e re-crime
Posted 4 de novembro de 2020
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A repórter, na TV que ficava pendurada no fundo do salão, falava sem que eu pudesse ouvi-la, muito menos distinguir o assunto da matéria.
As tevês de padaria, de boteco, de cabeleireiro – tem TV em todo lugar público da cidade – não permitem que sejam escutadas. Estão lá para marcar território, não para serem compreendidas. O volume é baixo, apenas o suficiente para rivalizar com o rumor do entorno.
As notícias, sempre importantíssimas por um período máximo de um par de horas, se misturam às miudezas das movimentações dos corpos e objetos: música ambiente, meninas cujo uniforme é um avental, passando com pratos e xícaras fumegantes, crianças pequenas caindo de sono no colo de suas mães, também muito sonolentas e apressadas para levá-las para a escola, um grupo fazendo reunião com pão e manteiga, comentários do jogo da noite anterior, uma morte, na madrugada, que o chapeiro conta para o moço que tira o café.
Eu sentada muito cedo na padaria boiava a atenção neste mar de signos sem conseguir acompanhar nenhum Permanecia mastigando, simplesmente só mastigando, ritmando aleatóriamente o andamento das mastigadas, ora com a música ambiente do salão, ora com o barulho do toque do celular da moça ao lado.
Estratégicas para não começar a me recriminar. A palavra – recriminar – ouvida nesse momento, pinçada no meio do burburinho, tinha sido o spot. O punctum, que havia dado início ao processo.
Recriminar tinha como significado aproximado: acordar e descobrir que aquilo que eu havia identificado no dia anterior como crítico, reprovável e urgente, ainda estava lá no dia seguinte. E, daqui mais uns dias a coisa iria ficar mais séria, transformando o deslise em defeito, em cansaço, visto que ainda estava lá e ainda não tinha sido corrigido, eliminado, elevando a desvirtude ao status de crime. Crime que vai se repetir, infinitamente dentro do ambiente claustrofóbico da minha cabeça. É assim o caminho que faz um pensamento levemente perturbardor se transformar em um re-crime. Os dias passando, sucessivamente, deixando sua marca no esquema do eterno retorno de uma mente neurótica.
Sentada naquelas mesinhas, que cabem somente duas pessoas, sozinha, muito cedo para ter companhia, muito cedo para ir trabalhar, não havia o que me impedisse. Ruminava, um ou dois pensamentos, os de sempre.
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