Fornada

Agora será por telefone

Posted on: 2 de novembro de 2020

Passava das onze da manhã. Lucas se sentia incomodado por estar descalço. Olhava os próprios pés, muito brancos, em oposição ao fundo cinzento e fuliginoso da calçada. Olhou para eles com compaixão. Tinham um aspecto desprotegido, como estrangeiros recém chegados ao terceiro mundo. Por que estava sem sapatos? De manhã, no meio da rua! Naquele horário já deveria estar no hospital; a sala de espera já devia estar abarrotada de gente. As variadas feições de tédio. Deveria correr, achar como sair dali, calçar os sapatos. Pensar nisso provocava-lhe uma urgência na barriga. “Barriga! Lucas, onde já se viu usar essa palavra.” Não sabia se era fome ou vontade de urinar. Andava perto do meio fio, quase no asfalto, já que a maior parte da calçada estava tomada por cobertores estendidos, lado a lado. Um dormitório a céu aberto, repleto de camas improvisadas e ninguém dormindo nelas. Os moradores de rua haviam abandonado suas cobertas à inclemência do sol chapado de verão. Uma luz de meio dia tornava brutal o tom rosa e azul das mantas jogadas no chão. Eram motivos infantis, barbies, bambis. Novinhas, recém sujas na noite anterior, pelos que não estavam mais ali.  Se sentia cansado de andar por ali, seus pés doiam e a cena dos cobertores abandonados se estendia a perder de vista pelo horizonte. O Hospital logicamente deveria estar por perto. Quem sabe chegando lá encontraria seus sapatos na portaria. Uma das cobertas estava suja de cocô, meio mole, quer dizer, diarreico, mais claro que o normal. A diarreia do medo, ouviu uma voz, que não era a sua reverberar na sua cabeça. 

Acordou deste sonho com a frase pulsando na mente. Era muito cedo. Desde o início da pandemia cada dia acordava, desnecessariamente, um pouco mais cedo que o dia anterior. Resolveu levantar mesmo sendo quatro e meia da madrugada.  Foi até a cozinha, acendendo todas as luzes pelo caminho, e fez um café. Um trecho da rua cintilava, na moldura da janela. “Deve ter chovido.” Uma garoazinha fina ainda fazia brilhar contornos dos prédios. Assim, molhada, a rua até se apresentava bela. Na penumbra, naquele horário. Gostou de estar acordado. Ainda mais de ter saído daquele sonho. O preço era começar antes da hora a girar a roda dentada que movia o dia.

Algo de especial ia acontecer no dia que estava para começar. A direção do Hospital havia determinado o fim do esquema de home office absoluto para começar a introduzir aos poucos a volta dos médicos aos postos de trabalho.

Trabalhar em isolamento, em casa, não se revelara um grande problema para ele. Já era descolado nisso, de outros carnavais. Nada muito diferente de seus dias de adolescente, em casa, diante do computador por horas a fio. A motivação pode não ser a mesma,  mas a sensação de estar encasulado e protegido em seu pequeno mundinho lhe era muito cara. Ademais, gostava das rotinas auto-impostas. Trabalhar em casa significava lutar contra si mesmo. Todos os dias, antes de assumir seu papel de médico diante da tela do computador,  argumentava para si que seria uma alternativa deixar tudo de lado e jogar vídeo game a tarde toda. Em resposta, seguia-se a reação seca, cirúrgica, de um arrancar-se do mundo dos desejos e compulsões para  o do controle do horário, da linguagem e da persona. Nos quinze anos de exercício da medicina sua habilidade de Tarzan do ciberspace em pular de assunto em assunto já estava domada. O balé de um cipó a outro no mundo das informações continuava a acontecer, mas circunscrito a um só universo, o da saúde e suas doenças.

Na pandemia os dias de exílio transcorriam calmos, estava se dando bem em ser seu próprio feitor. De manhã  limpava a casa por duas horas; após essa tarefa, tomava um banho, vestia uma camisa branca na parte de cima do corpo,  uma bermuda na de baixo e estava pronto para  ser o Dr. Lucas Nuvola.

Falava com os pacientes pela câmera. Alguns já haviam se acostumado, treinando com os filhos e com os netos desde que os contatos foram proibidos. A maioria de seus pacientes era de idosos. A pandemia fez com que eles tivessem que aprender compulsoriamente a utilizar a tecnologia de comunicação. Porém, isso não significava que a comunicação fosse eficaz ou pelo menos satisfatória. As consultas demoravam mais tempo e as reservas em declarar informações relevantes aumentaram muito. Porém era prático, factível. Ele mesmo, antes de tudo isso, quando todos os encontros ainda eram ao vivo, considerava sugerir à direção do hospital que as consultas de rotina pudessem ser feitas pela internet. Obviamente que conseguiria ser médico sem ter que ver pessoas, pensava. Pelo menos era o que achava.

Tomou mais um café e comeu um croissant requentado. Cinco e meia da manhã, ele temia que fosse passar o resto do dia com sono. O sol  começava a iluminar hesitante a pia da cozinha. Gastara um bom pedaço da madrugada lendo as últimas informações do boletim de Infectologia, alternando a leitura com momentos em que deixava correr os dedos através de um toque ágil da esquerda para a direita na tela do celular, descartando rostos e mais rostos de mulheres possíveis no aplicativo de encontros. Ele não queria realmente encontrar alguém mas não conseguia se furtar, nessas horas mortas, a descartar quase que automaticamente as infinitas fotos de meninas.

A rua perdera o brilho molhado da noite dando lugar à fachada mais que sólida das colunas do prédio em frente ao seu, na Rua Maria Antônia. O silêncio, que num dia como hoje, antes da pandemia, já estaria coalhado de ruídos, ainda pesava no ar, reverberando muitas ausências. Os passos que não estavam na rua, os escapamentos que não haviam saído das garagens marcavam com intensidade suas ausências. Marta também não estava.  Com um argumento, mais uma vez, escorregou por entre seus dedos e não veio ficar, na noite passada. Ele não sabia com que nome deveria se referir a ela. Se era uma ficante, uma transa, uma amiga ou uma colega. Uma dúvida de nomenclatura que causaria algum embaraço, não fosse a ausência de encontros sociais amenizar a questão. A questão, obviamente, era que ele queria que ela ficasse, muitas e muitas vezes em que ela nem estava por ali.

Acabou a leitura do boletim, fechou o aplicativo e colocou comida para o peixe, que se  chamava Ubaldo – o ubíquo.  

O dia se aproximava e com ele o momento da retomada. Lucas teria que pegar o carro e sair na rua. Ao chegar ao hospital teria que atender um número mínimo de pessoas. A novidade: deveria fazer os retornos através de uma ligação telefônica. Eis aí – além do retorno das pessoas – um outro problema. Telefonemas. A interdição das ligações era um fenômeno recente, que não tinha nada a ver com a pandemia. De uma hora para outra o ato de telefonar tinha passado para o lado das impropriedades, coisa que uma pessoa bem educada não deveria cometer. Aquele que se importava com a elegância sempre enviava uma mensagem prévia perguntando “posso ligar?” e muitas vezes tudo era resolvido por escrito mesmo. A comunicação em tempo real estava em baixa, quase um tabu.

Ele tinha vontade de ligar para Marta. Talvez, justamente, por ser uma indelicadeza. Sentia que seria uma espécie de marcação de território. Até o momento isso ainda não tinha sido feito. Se conheceram na casa de um amigo, trocaram mensagens, nunca se falaram por telefone. A simultaneidade, o ritmo do diálogo, as pausas para a troca de interlocutores, faziam-no fantasiar com uma rejeição irremediável. Quando ficava com muita vontade refletia  que escrever dá muito mais trabalho e tentava se imaginar  com o telefone na mão, falando. Ouviu sua própria voz mentalmente, engasgando ou gaguejando de maneira quase imperceptível. Era um costume seu imaginar-se passando vergonha, o que não acontecia na vida real. Nada de ligações ao raiar do dia, decidiu.

Lavou a louça e, desta vez, vestiu-se com toda a roupa para sair; calça, camisa, meias e sapato. Despediu-se da escova de dente de Marta, que se encontrava largada num canto da pia há várias semanas, penteou o cabelo todo para trás, checou se a caixa estava em seu bolso e saiu para o mundo.

A Rua da Consolação continuava deserta às sete da manhã, deixando para a imaginação do passante adivinhar se existiriam pessoas debaixo dos cobertores que dormiam na orla do muro do cemitério. O sol não ardia cegante como no sonho.

Lucas dirigia devagar, usufruindo a paisagem erma e rara na cidade em que nasceu. As vitrines e as portas de correr de metal que se sucediam martelavam a mensagem incômoda de não haver ninguém para olhar, ninguém para furtar.

As árvores estavam gordas e o ar translúcido. Talvez isso não fosse obra da estação do ano, mas unicamente da ausência de  poluentes no ar. Ao parar no semáforo cruzou olhares com o vulto de uma senhora na janela do segundo andar de um prédio decrépito da década de cinquenta. Ela, ao perceber estar sendo observada, abandonou rapidamente o objeto que tinha nas mãos e saiu da janela para o interior da casa, em uma posição segura onde não poderia ser vista. Ele não viu com clareza o que estava em suas mãos mas, inexplicavelmente, tinha certeza que era um telefone. Um daqueles antigos, pretos e pesados que estragavam as unhas das secretárias. A velha lembrava Bete Davis com o telefone na mão, os olhos arregalados.

Lembrou mais uma vez com uma desagradável ansiedade que seria hoje o dia, o dia dos telefonemas. Uma voz interna abrigava seu pedaço criança que se recusava a aceitar o retorno ao hospital. Uma ervilha dura e importante dentro do seu ser. Estava na casa dos trinta, e fazia o possível para esconder o menino de oito anos que ainda estava lá.

Para calar o menino, enquanto dirigia, ele narrava para si mesmo explicações e arrazoados sensatos sobre os acontecimentos dramáticos que vinha vivendo até agora. Sua voz interna aveludava-se, imitando um comentarista de tevê falando que  “O ano avança complicado, moroso. A situação mais atípica que a humanidade já viveu. A pandemia chega ao mês de agosto e muita coisa ainda poderá acontecer.” A voz de locutor apaziguava seus medos por alguns instantes e o menino recolhia-se para o interior.

Mais de mil mortes diárias, que eram esquecidas rapidamente, para dar lugar a mais mil no dia seguinte. Sabia que aos médicos era vetada a possibilidade de pensar em mortes da maneira emotiva que as outras profissões podem pensar. Mortes devem ter nomes e particularidades, mas somente por um curto espaço de tempo, não para sempre. Devem desaparecer para dar lugar a outras pessoas, vivas. Eventualmente doentes.

Agora estava perto de chegar, já na Avenida Paulista. Poucas pessoas caminhando nas calçadas  bastaram para desmanchar o clima apocalíptico que havia se instaurado em seu humor desde o sonho e o despertar precoce naquela madrugada. Levou a mão ao bolso da calça para checar. A caixa de fósforo estava segura, dentro dela  o rabo da lagartixa.

Descendo a rampa da garagem recordou com perplexidade o que havia feito de manhã: o momento em que despertou, mais cedo, e olhou para a rua toda molhada;  o momento do descarte das meninas com a polpa do indicador; sua ida ao banheiro para o banho e o momento em que achou o rabo da lagartixa.

Naquela manhã, enquanto escovava os dentes, uma coisinha pequena atrás do vaso chamou a atenção da sua vista. Um rabo de lagartixa, possivelmente o da lagartixa que costumava habitar seu banheiro, jazia caído atrás da privada, solitário, destacado do corpo.  A parte amputada, caída no chão, já estava um pouco seca, ele sentiu ao toque. O pedaço que faltava, o resto da lagartixa, não estava por ali.

Era uma que costumava aparecer no teto do banheiro, há mais de um ano. A convivência era respeitosa. Ela nunca ousara cair, gelada, em sua cabeça e ele nunca a ameaçara com venenos e cutucadas de vassoura. O que poderia tê-la assustado tanto a ponto de ter que deixar uma parte de si para trás? Pensou. Foi até a cozinha, esvaziou  uma caixa de fósforos e guardou com cuidado o rabo solitário lá dentro. Saiu do banheiro com ela no bolso, já atrasado para o trabalho.

Achava que os pacientes não o consideravam um bom médico. Observar era sua paixão secreta, mas os pacientes não sabiam disso. Em seu tipo de observação, digamos livre, costumava ter poucas certezas e era disso que gostava. Acontecia de, ao considerar um paciente, duas caixas isoladas se abrirem em sua mente: uma que coletava a queixa, o índice de colesterol, a evolução da cirurgia, o estado geral. Noutra caixa,  guardava o atípico: um dente faltando , uma sombra no semblante, um olhar desconfiado, um cheiro de mofo em  roupas que pareciam novas. Apesar das informações da segunda caixa não estarem registradas por escrito em nenhum arquivo ele era capaz de lembrar com exatidão destes sinais, aparentemente inúteis.  

De alguns pacientes registrava o tom de voz, se costumava demonstrar ansiedade, conformismo ou desamparo. Lembrava se vinham com o marido ou a filha,  e, se era um cuidador quem vinha junto, observava a  distância que sentavam ou do outro. Ao Sr. Alfredo Rinaldi sempre dizia o quanto ele poderia se beneficiar ingerindo menos açúcar, unicamente para olhar sua reação: um tamborilar bem audível no tampo da mesa, com os dedos da mão direita, sendo que um dos dedos apresentava  uma mancha preta na unha; um hematoma velho e enegrecido de uma provável martelada no dedo.  No último encontro, antes de tudo fechar, teve que comunicar ao Sr. Alfredo a recidiva do tumor. Observou que a informação causou uma leve e quase imperceptível alteração no padrão do tamborilar. Guardou esse dado para si.

Quanto aos dados objetivos, estes era preciso consultar o prontuário para se inteirar de quem estava à sua frente. Não era um prodígio de memória, felizmente ninguém estava em sua cabeça a ver essas atividades.

Na garagem parou em uma vaga distante dos poucos carros esparsos. O andar estava quase vazio. Em um dia comum estaria chegando, vindo da academia. Como estavam fechadas não precisou se sentir um farsante em não ter se exercitado nos últimos meses. Lá fora ainda fazia frio, porém no subsolo das garagens não existe clima. Sentiu-se protegido e levou a mão automaticamente ao bolso, para checar se o rabo ainda estava lá, dentro da caixa. Estava, e isso lhe deu confiança, sem atinar na exata  razão de ter decidido trazê-la consigo para o trabalho.

Desligou o motor e notou um  vulto furtivo e encapotado tentando alcançar o elevador antes que  outra pessoa o fizesse. Com a doença, havia que se evitar ao máximo o contato humano. Uma atitude que, para muita gente, veio a calhar, legitimando a recusa da companhia do outro. Era possível parecer menos comunitário, sem recriminações.

Ficou um momento dentro do carro, contando as pilastras da garagem. Calculava se já seria possível sair do carro sem encontrar ninguém. Abriu a porta e olhou mais uma vez em torno de si. Nenhum barulho de motor, nem de saltos de sapato caminhando no cimento.

Hoje seriam só cinco consultas presenciais e cinco telefonemas e estaria liberado para voltar para casa e continuar o trabalho pelo computador, pensava consolando-se.  Subiu ao décimo andar sozinho. A porta automática se abriu e a recepcionista não estava em seu balcão. Lembrou que, talvez, o senhor da faxina também não estivesse. Os corredores, que outrora pareciam pequenos, agora alongavam-se imensos e solitários, até o ponto de fuga bege ao fundo. Uma porta e outra já estavam com a luz acesa, já haviam colegas no andar. Passou sem chamar atenção para si e chegou em sua sala. Sentou em sua mesa, ligou o computador e retirou a caixa de fósforo do bolso. Guardou-a na gaveta ao lado do celular. Este se acendeu ao ser movimentado revelando  uma ligação perdida de Marta. Afinal ela havia aparecido. Havia me ligado.

Ficariam as duas para mais tarde. Abriu a lista de consultas e retornos e começou a trabalhar.

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