Fornada

Recuperação

Posted on: 24 de abril de 2019

 

Quando não se pode fazer nada qualquer coisinha insignificante que nos ponha em atividade se torna importante.

Por recomendação médica tinha que ficar ociosa e naquela manhã ensolarada de possibilidades era necessário ficar parada por causa do corte. Uma cirurgia pélvica a havia colocado em suspenso, ameaçando abrir-lhe as entranhas pelos pontos cirúrgicos e nos últimos cinco dias a não ação a estava deixando meio louca. Às vezes deitada, às vezes em movimento lento, mas longe dos afazeres que pudessem levá-la a fazer contrações abdominais, ela calculava se seria hora de andar até a cozinha para buscar um pedaço de chocolate que sobrou do ovo de páscoa.

De repouso. Sentiu-se invejada e lembrou que é grande o número de pessoas que tasca o lugar comum diante do impedimento: quem dera eu pudesse ficar sem fazer nada, só dormindo, lendo e comendo chocolate. Comer chocolate para ela sempre foi controvérsia e poesia.

Deixou pra lá e resolveu comer o pedaço de abacate que já estava ali, na beirada do criado mudo.

Pensava que talvez fosse mal agradecida. Estava ali, no lugar privilegiado que a maioria dizia desejar estar e, no entanto, queria fazer qualquer coisa, nem que fosse passar roupa.

O que a irritava não era exatamente não poder fazer nada.  Era perceber que quando queria fazer algo, isso significava outra coisa, mais próxima do exibicionismo. Fazer uma frase original, uma bracciola perfeita, um comentário inteligente sobre um filme, impressionar o outro. Estar na ativa, caia-lhe o pano, significava plateia e naquele repouso ela se encontrava sozinha. Um cachorro sem dono.

Não estava aguentando a ideia que voltava, acompanhando o próximo pensamento, de que o que queremos mesmo, no fundo, é mostrar. Como os cachorros – animais muito chatos, por esta ótica.

Queremos agradar descaradamente, como eles, que fazem coisas por aprovação, iludindo-nos que estão fazendo por biscoitos. Observava-os sempre que podia nos passeios diários pelas redondezas, os vizinhos com seus cachorros; tecendo mentalmente longos raciocínios sociológicos, já até conhecia de vista todos os casais, sem nunca ter abordado nenhum deles para uma conversa amigável e despretensiosa.

Por isso a fome canina acabou faz tempo, dizia para si, um dia colocaria isso no papel.  Cachorros que vivem com humanos talvez nunca, no espaço de suas vidas, tiveram a chance de experimentar em seus estômagos a urgência e a radicalidade da fome constante. Gerações de pets já apresentam esse traço em sua epigenética. Está extinta a fome entre os cães. À sua disposição têm comida seca, molhada, snacks em forma de osso, que mimetizam a aparência de doces, ração diet, light, para problemas renais, para cachorros senis, o que explica suas existências exangues de instinto e um certo ar de tédio existencial.

Eles não querem mais um biscoitinho – não estão com fome! – e são fofos daquele jeito porque estão viciados em agradar. Como nós, no facebook.

Ela ainda não havia levantado da cama, nem ligado o notebook e estava há algum tempo pensando aquelas coisas que a impediam de iniciar seu dia. A opção de olhar a rede social antes do banho trazia a lembrança da naúsea na boca do estômago de quando ainda fumava e pegava mais um cigarro mesmo sem ter nenhuma vontade de fumar. Dar likes, e pontuar lindo e amei para semi-desconhecidos na internet não era exatamente fazer algo. Essa atividade podia, mas enjoava o estômago como aquele mais um cigarro e a auto comparação com os cachorros, nem se fala, uma desonra. Foi para a mesa escrever, “prefiro gatos e hoje não estou para likes”.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Depois de ter escrito tudo aquilo, o que lhe rendeu uma hora de atividade legítima, leu e releu o texto, notando que faltava o elemento gerador de tensão, que de praxe tem que entrar na dinâmica narrativa, senão a coisa não evolui. E daí que um personagem está deitado, ruminando suas mesquinharias e ódios cotidianos? Para sairmos do impasse há que fazer o personagem sofrer algum revés, alguma ruptura de contexto, como ser demitido da universidade em que trabalhava sob acusação de assédio a uma de suas alunas menor de idade, ou ter sessenta anos, estar andando de bicicleta e perder a perna em um atropelamento. Parecia artifício de novela mexicana, mas ela considerava aquelas soluções como altíssima literatura. Espremendo, quem sabe surgiria o caminho através de um tombo na escada, uma invasão do quarto por uma barata voadora, uma campainha que toca, algo que desse um salto na narrativa. Notara que o lugar comum mais comum do cinema, com relação a escritores, era o impasse criativo. Tão banais quanto suas considerações sobre cães foram suas subsequentes tentativas de introduzir um motor inventivo para que sua história andasse. Acabou pegando no sono novamente às onze e onze da manhã, para viver um sonho perturbador.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Sonhava que falava para o marido que a vontade de escrever deve ter surgido quando foi ao zoológico pela primeira vez com a escola. Sempre gostou de animais e os animais que tinha visto no zoológico eram um deslumbramento, pois faziam parte dos de tipo selvagem. Eles eram maiores, de outros países e cheiravam muito, um misto de fedor e perfume. Ainda que em condição de presidiários, sonolentos e cercados de grades, em sua cabeça infantil eram o símbolo do exotismo, da bravura e do mundo desconhecido dos instintos.

O passeio ao zoológico havia sido diferente de tudo o que havia vivido até o momento, em sua infância de menina solitária, que passava tardes inteiras observando o jardim de casa – que na época ainda tinha grilos, besouros, joaninhas, lagartas de fogo, gatos passeando no fio do muro e lá no fundo do quintal um cachorro preso na corrente. Descortinou um mundo mágico, elegante, variado.

No final da visita a professora de português pediu, para a próxima aula,  uma redação que contasse as impressões do passeio. Ela fez seu primeiro texto de dez páginas. Maravilhada com a experiência em si nem pensou na possibilidade de ser bem avaliada; o que acabou acontecendo, para seu tormento futuro.

Ganhou a nota máxima e desde então tem carregado um fantasma, escrever para sair um texto bom. Péssimo.

Seu marido ouvia calado e com paciência, o que era o possível naquele horário, quase madrugada da manhã. Ela pausava a narrativa com um olhar de relance a ele, que mastigava como se fosse um moedor, a espera de comentários. Não demorava muito na pausa, retomando a fala, para que ele não percebesse sua expectativa.

Na ausência de comentários, perdeu a paciência e chegou logo ao ponto em que o relato causaria espanto. contando em aceleração que esse processo de ganhar dez na redação atirou-a ao patamar dos cachorros, que fazem tudo por recompensa. E parou de falar. Aí sim, tendo quase certeza de que agora ele falaria algo diante de tal repto.

Passaram-se alguns momentos, para ela constrangedores, e ele falou calmamente que gostava muito do que ela escrevia, que aliás ela deveria escrever mais e que uma pessoa que tem talento não deve furtar o mundo do benefício de conhecer seus frutos, olhando-a com ternura e voltando a triturar seu pão.

Fez-se na copa um silêncio demorado. Ela olhou para baixo, para o jardim do prédio com displicência. Viu as árvores que margeavam o playground flutuarem lentamente com o vento, olhou a grama começando a clarear com os primeiros raios de sol e logo em seguida, como se surgisse do nada viu um buraco fundo, retangular, em forma de cova no meio terreno.

Um som grave de máquinas funcionando acompanhou a visão e ela soube que algo aconteceria, como se o sonho fosse dirigido por David Lynch.  Pensou ansiosa em avisar o marido, antes que a fatalidade ocorresse. Não deu tempo e a câmera tomou-a em close, de boca aberta, o som das máquinas mais ensurdecedor e agudo que no início, enquanto o carro ganhava o plano em alta velocidade sobrepassando suas cabeças, vindo da direção de suas costas, quebrando a janela da sala de estar,  indo cair exatamente dentro da cova recém cavada no jardim.

O barulho parou. O marido arregalou atônito os olhos.

Apesar de assustada deixou que ele ficasse fora da cena enquanto se concentrava em entender porque estava sonhando com um acidente de automóvel. Ficou com vergonha, sua mãe havia morrido há pouco tempo e a cova se parecia demais com um túmulo para ser coincidência. Sentiu uma imensa dor que se traduzia em imagem na visão do carro afundando no buraco cheio de lama mole. Sentiu pena do motorista apesar dele ser um criminoso. Soube, de súbito, que ele fugia, da polícia ou de sua própria gangue, o que no final dá na mesma diante da morte.

Voltou à conversa com o marido apagando toda a parte do carro, retomando sua réplica na conversa sobre escrita.

Eu sei que você gosta do que escrevo, eu mesma também gosto, em certas ocasiões, mas o que eu gostaria mesmo, e ficou parada com a xícara na mão, era de escrever como quem vomita, escrever como uma ariranha que fugiu do zoológico, como um gato selvagem e não como um pet.

 

 

Deixe um comentário